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Fracturas inexplicáveis. Um sinal de maus tratos nas crianças

A  OMS considera como abuso infantil, “Todas as formas de maus tratos físicos e/ou emocionais, abuso sexual, negligencia ou tratamento negligente, exploração comercial ou de outro tipo que resulte em danos reais ou potenciais à saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança, no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou  poder.” As fracturas por maus tratos, estão contempladas no capítulo dos danos à saúde da criança e do adolescente.

Fracturas em crianças com menos de um ano são altamente suspeitas de negligência ou maus tratos. Estima-se que 55/100000 menores de um ano, sofrem fracturas de origem duvidosa todos os anos. Comparativamente com outros distúrbios, a incidência de fracturas pode não ser muito elevada, o que não significa que seja  menos preocupante. As estatísticas  sempre pecam por defeito, nem todos os casos são notificados ou identificados.  Embora as fracturas poucas vezes ameaçam directamente a vida da criança,  não poucas vezes deixam sequelas  permanentes importantes. 

A legislação actual sobre este tipo de  abusos, nasceu a partir dos trabalhos de dois médicos:  Ambroise Tardieu, médico patologista francês, e John Caffey, um médico radiologista pediátrico dos Estados Unidos da Norteamérica. Foram eles, os que na sua época,  alertaram sobre a existência de lesões  em crianças que dificilmente teriam uma origem “accidental”. Em 1860 o Dr. Ambroise Tardieu alertou aos médicos para estarem atentos a achados clínicos/radiográficos  suspeitos. “ Acontece que esses casos  multiplicam-se e provocam indignação, pelo que não deveriam pegar desprevenido ao médico, muitas vezes o único capaz de denunciar o crime às autoridades judiciárias”

John Caffey, nasceu em Utah em 1985, foi um dos fundadores da Sociedade de Radiologia Pediátrica de Norteamérica em 1958.  Até agora existe o “Prêmio John Caffrey”, outorgado anualmente ao melhor trabalho científico. Seus valiosos estudos sobre a  hiperostose cortical infantil, um distúrbio que afecta o esqueleto imaturo, justificam  que a mesma tenha o seu nome, “Doença de Caffey”. 

Em 1946, o Dr. Caffey, redactó um artigo titulado “ Fracturas múltiplas nos ossos longos de crianças com Hematoma Subdural”. Um texto clássico da medicina. Nesse artigo, o Dr. Caffey chamou a atenção sobre seis bebês saudáveis, todos com Hematoma Subdural e fracturas de ossos longos. O que levantou suspeita no Dr. Caffey foi que os hematomas e as fracturas tinham ocorrido em momentos diferentes, e não foi possível identificar  traumatismos que as justificassem. Também não se encontraram  evidências de algum distúrbio ósseo ou metabólico relacionado. O Dr. Caffey comentou: “ As causas das fracturas nos ossos desses pacientes não foram observadas ou foram negadas quando observadas. O motivo da negação nunca foi bem estabelecido”. Depois continuou: “A relação causal entre a força traumática e o osso danificado é clara. Resulta pouco provável que um traumatismo banal tenha causado as fracturas completas dos fêmures”.

Finalmente, após mais de duas décadas, foi sugerida a provável causa por detrás dessas fracturas. Em 1962, Kempe et al, definem o termo  “Síndrome da Criança Espancada” que, de algum modo, vincula-se com a origem de várias dessas lesões. Este conceito fundamentou  outros estudos e como resultado se elaboram  leis contra o abuso infantil. Deve-se ter em conta que existem distúrbios,  que alteram a estructura do osso, tornando-o suscetível às fracturas. A connotaçao negativa e acusatoria do termo “Lesões por Abuso Infantil” (LAI), em eventos onde as fracturas podem ser resultar de alguma doença pré-existente, recomenda ser cuidadosos. Assim, sempre deve-se denominar estas lesões como “ Não Accidentais “ ou  como “Fracturas Não Accidentais” (FNA),  até encontrar a real causa. Desse jeito evita-se qualquer responsabilização inocente. Somente chama-se a atenção para  uma lesão com  indícios de  não ser accidental.

Até agora não conheço nenhum caso, em nosso meio, onde uma FNA tenha despoletado algum processo legal. Isso não significa que não tenhamos ossos fraturados por abusos infantis. São frequentes as denúncias de espancamentos de crianças, muitas delas pelos próprios familiares. A falta de alertas sobre FNA, deve-se em parte, ao descuido dos profissionais de saúde. Os que lidam com crianças e adolescentes , devem estar mais atentos às  fraturas com histórico controverso. Evidentemente há certo desconhecimento das suas características e complexidades, e sobretudo o que fazer após ter alguma suspeita

Num estudo feito nos Estados Unidos de Norteamérica com  173 crianças abusadas e com lesões cerebrais, 54  inicialmente não foram identificadas como victimas de abuso. Se assim fosse, , 50 delas  não teriam sido agredidas outra vez e 4 não teriam morrido. A identificação precoce de sinais compatíveis com maus tratos infantis, sejam eles FNA, lesões de partes moles ou traumatismos cranioencefálicos,  faz a diferença entre a vida e a morte de alguma criança. Não poucas vezes são os médicos, os únicos em condições de fazer a diferença.

É fundamental saber identificar tipos de fracturas que são infrequentes, com base na idade, o estado geral da criança e o  ambiente social onde se desenvolve. Por exemplo, fracturas das costelas accidentais são raras nas crianças,  mas muito frequentes nas victimas de abuso. Na ausência de um trauma torácico maior, algum procedimento de ressuscitação prévio ou distúrbio endocrinometabólico, a fractura costal deve alertar sobre maus tratos. Pior se forem várias costelas atingidas. Fracturas de ossos longos com traço espiral  resultam da aplicação de uma força de torção. Dificilmente isso acontece naturalmente em menores de três anos. Fracturas de fêmur, tíbia e úmero, em  bebês que ainda nem sequer andam, devem sempre disparar os alarmes. Crianças ou adolescentes que practicam desportos de contacto ou motorizados podem ter fracturas pouco frequentes em outras da sua mesma idade. Não é raro observar fracturas por stress em crianças que praticam artes marciais, ou lesões da fise em jogadores de futebol.

A existência de fracturas, em diferentes estágios de cicatrização, deve levantar suspeita imediata no profissional que as identifique. As fracturas metafisárias em ossos longos têm particular importância porque podem ser resultado de sacudidas violentas e com dano cerebral. A maioria dessas fracturas cicatrizam sem qualquer sequela. Mas atenção: o aspecto sinistro delas está nas lesões associadas frequentes e na magnitude da agressão que elas  podem representar…ok?

Algumas lesões ganham ou perdem importância segundo a idade do paciente.Por exemplo uma fractura à volta do tornozelo numa criança que ainda não deambula é altamente suspeita de abuso, já numa criança em idade escolar é pouco suspeita. Uma ou duas fracturas, em diferentes estágios de consolidação numa criança que practica desportos de contacto ou motorizados tem pouca especificidade. Na idade pré-escolar não são raras as fracturas não deslocadas da tíbia, as conhecidas “toddler fractures”.

Existem outros indícios de alerta além das radiografias. Afirmações como: “Deve ter acontecido quando troquei a fralda dele” ou “ A encontrei assim na cama, deve ter prendido a perna em alguma coisa” ou “Não sei como aconteceu, devo ter distraído um segundo”, digamos que não são muito convincentes sobre a origem das lesões. Algumas  fracturas de ossos longos resultam da violência exercida para arrancar a criança do sítio onde ela estava. Outras são producto de quedas de altura por negligência, descuido ou…intenção?.

Os hematomas são outro sinal importante na avaliação das FNA. Hematomas distantes do foco da fractura podem indicar o lugar onde foi exercida a força deformante. Contusões à volta das fracturas são frequentes, mas convenhamos que são improváveis na face, pescoço, genitais e nádegas, pelo menos por accidente. A forma e padrão dos hematomas são importantes porque conservam a forma do objeto que os provocou. A mão, por exemplo, deixa uma impressão negativa. 

Como diferenciar as FNA?
Padrões de identificação de Fracturas Não Accidentais foram publicados internacionalmente. São organizadas em dois grupos, as altamente sensíveis de abuso e as que são menos específicas:

  • Fracturas altamente específicas de abuso:
    Fracturas metafisárias, fracturas das costelas e do esterno, fracturas da escápula, fracturas dos processos espinhosos das vértebras, fracturas dos extremos da clavícula, fracturas dos dedos numa criança que não anda, fracturas em diferentes estágios de cicatrização, fracturas bilaterais, fracturas complexas do crânio. 
  • Fracturas pouco específicas:
    Fracturas do terço médio da clavícula, Fraturas lineares de crânio, fracturas diafisárias não complexas.

O principal diagnóstico diferencial é com a existência de distúrbios ósseos de origem metabólica que enfraquecem os ossos e também com variações da osteogênese imperfeita. Por exemplo, o raquitismo, bastante frequente em nosso meio, enfraquece os ossos, e  podem quebrar mais facilmente,  Resulta que com estudos de laboratório pode-se definir o status metabólico da criança, além de que os sinais radiográficos do raquitismo são bem conhecidos. No caso da osteogênese imperfeita, o diagnóstico das formas mais graves é relativamente fácil.  É no Tipo I onde as fracturas são menos frequentes, mas o elemento diferencial é que quase só aparecem depois da criança começar a andar e curiosamente, a maioria das FNA por abuso são prévias ao início da marcha.

Resumindo.
Antes de fazer algum tipo de comunicação, todos os elementos já assinalados devem ser tomados em conta. Não manifestar-se irresponsavelmente após detecção de algum elemento suspeito, lembrar o impacto negativo legal e social em jogo. Um único elemento raramente justifica a existência de abuso infantil. Maus tratos na criança não tem achado patognomônico, persevere na pesquisa antes de qualquer pronunciamento.

Sobretudo recomendo  procurar argumentos consistentes com os sinais que temos apresentado neste texto, e procurar sempre a opinião de colegas, com alguma experiência na abordagem destas situações. Abraços.

Bibliografia:

  • Badoe E. A critical review of child abuse and its management in Africa. African Journal of Emergency Medicine. 1 de janeiro de 2017;7:S32
  • Berthold O, Frericks B, John T, Clemens V, Fegert JM, Moers AV. Abuse as a Cause of Childhood Fractures. Dtsch Arztebl Int. 2018 Nov 16;115(46):769-775. doi: 10.3238/arztebl.2018.0769. PMID: 30602409; PMCID: PMC6329369.
  • Carty HM. Fractures caused by child abuse. J Bone Joint Surg Br. 1993 Nov;75(6):849-57. doi: 10.1302/0301-620X.75B6.8245070. PMID: 8245070.

Carty H. M. (1993). Fractures caused by child abuse. The Journal of bone and joint surgery. British volume75(6), 849–857. https://doi.org/10.1302/0301-620X.75B6.8245070

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