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O tratamento sustentável das fracturas em tempo de crise.

O atendimento aos pacientes com fracturas  será mais complicado na actual situação da saúde pública. Por um lado está o número sempre crescente de victimas de acidentes de viação e por outro o impacto negativo da Covid-19 e as dificuldades económicas que o país enfrenta . Mesmo antes do início da crise, o tratamento destes pacientes  não era satisfatório, é de esperar  que a situação se agrave.

A osteossíntese faz parte do tratamento contemporâneo das fracturas. Quando é feita correctamente encurta o período de recuperação, melhora a qualidade de vida e deixa menos sequelas. Isto tem um preço, para fazer uma boa osteossíntese, são necessários recursos materiais muito específicos e recursos humanos capacitados. Trata-se de procedimentos cirúrgicos complexos. Qualquer falha resulta em verdadeiras catástrofes e não são poucas as que é constatado e  também participado.

A fixação externa tem demostrado sua eficácia na cirurgia de guerra e em calamidades com elevado número de victimas. A maioria dos exércitos modernos utilizam os fixadores externos como parte essencial da doutrina do tratamento dos feridos.
[External fixator frames as interim damage control for limb injuries: experience in the 2010 Haiti earthquake. J Trauma. 2011 Dec;71(6):E128-31]

Recentemente na India foi publicado um trabalho muito interessante acerca da reutilização dos fixadores externos num hospital rural. Embora a maioria dos fabricantes desaconselham esta práctica é um facto que muitos hospitais reutilizam os fixadores externos. O interessante aqui é que não tinha lido um trabalho científico sobre o assunto.

Neste estudo os fixadores depois de removidos do paciente, passam por uma revisão dos componentes. O objetivo é conferir se estão em condições de serem utilizados novamente. Se assim for são lavados, esterilizados e enviados novamente ao centro cirúrgico. O trabalho recomenda um máximo de 3 ciclos em cada fixador, porque aparecem algumas falhas mecânicas a partir da terceira reutilização. Este hospital cobra ao paciente uma taxa pelo uso do fixador, tipo um aluguer, parte do valor é devolvido na altura da remoção do aparelho. Em 15 meses colocaram 65 fixadores, principalmente em fracturas da tíbia, os gastos do hospital caíram de 4067 USD para 2791 USD, o que significou um 32% de poupança

No Centro Evangélico de Medicina de Lubango (CEML), localizado na Huila, a fixação externa é o método mais utilizado no tratamento das fracturas. Os resultados tem sido satisfatórios na maioria dos casos. A colocação de fixadores externos não exige do cirurgião uma curva de aprendizagem muito longa. A cirurgia pode ate ser feita com métodos de anestesia relativamente simples. Alguns fixadores mono-polares (colocam-se lateral ao osso), podem ser aplicados sem ter suporte de imagem no bloco operatório.

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Pacientes tratados com fixadores externos.

Nas jornadas da ortopedia sem fronteiras que tenho realizado, utilizo a fixação externa em pseudartroses, em osteomielites cronicas, em fracturas mal consolidadas, etc. No Lubango e em Kalukembe, operamos muitos pacientes utilizando fixadores externos reciclados, sem imagem intraoperatória, e honestamente não tivemos complicações de realce. Estou convencido de que sempre que indicado, tratar as fracturas com fixadores externos é uma opção valida e sustentável, principalmente no contexto actual do país.

Ver video ilustrativo da técnica divulgado pela AO

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