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Cadê o tratamento conservador das fracturas?

Augusto Sarmiento é um reconhecido ortopedista dos Estados Unidos que pauta pela abordagem mais fisiológica do tratamento das fracturas.

Conta Sarmiento que durante uma das suas conferências sobre o processo de consolidação das fracturas, chamou a atenção a um residente sênior que passou toda a apresentação a ler um jornal, o que era de facto uma falta de respeito para o orador e para o resto dos assistentes.

Após ouvir a reprimenda do Dr Sarmiento, o residente calmamente respondeu:

– Dr Sarmiento, com o maior respeito, eu não estou aqui para aprender como curar as fracturas, eu quero aprender como as devo fixar.

Inicialmente Sarmiento ficou algo perturbado com a resposta, mas pouco depois confirmou algo mais perturbador. Resulta que a maioria dos residentes presentes no encontro pensavam igual, o residente ao qual chamou a atenção tinha sido o único com coragem para dizer o que todos pensavam.

Nos últimos 20 anos, o tratamento das fracturas mudou drasticamente. A pressão dos fabricantes de implantes, a necessidade de recuperação mais rápida e a procura de reduções perfeitas nas imagens radiográficas levou a que os ortopedistas hoje se preocupem mais pela estética dos ossos fracturados que pela sua cura fisiologia.

A nova geração de especialistas está sendo formada neste contexto, o seu conhecimento acerca do tratamento não cirúrgico das fracturas é no mínimo precário, a sua capacidade técnica cai drasticamente onde não existem meios suficientes para este tipo de tratamento.

Muitos dos ortopedistas que laboram no país são formados nesse paradigma, num contexto onde há condições para o tratamento cirúrgico das fracturas. A situação é totalmente diferente aqui, onde são poucos os hospitais equipados convenientemente, ainda pior nas províncias do interior.

A fraca habilidade no tratamento conservador das fracturas leva a tentar operar atudo custo, mesmo em situações onde não há um mínimo de condições, de ai as catástrofes cirúrgicas, limítrofes com iatrogenia, que temos assistido durante as viagens dentro do projecto Ortopedistas Sem Fronteiras.

Os resultados do tratamento cirúrgico das fracturas são directamente proporcionais aos recursos técnicos e materiais utilizados, a perícia do cirurgião e até ao tipo de fracturas em que se implementa.

Para que, por exemplo, tentar fazer a osteossíntese de uma fractura diafisária da tíbia, fechada, não deslocada, que facilmente poderia ser tratada com um gesso e que por causa de uma má técnica vira uma pseudoartrose séptica ou osteomielite?

Penso que para minimizar esta situação é imprescindível a educação continuada, os ortopedistas da velha guarda, com experiência no tratamento não cirúrgico devem partilhar este conhecimento com prácticas demonstrativas e treinos. A ideia é disseminar a arte de tratar conservadoramente as fracturas sempre que possível.

A estas actividades devem ser convidados os médicos do atendimento primário, os técnicos, os enfermeiros e paramédicos que, sem ser ortopedistas, tem a responsabilidade de tratar fracturas dentro da sua comunidade, só assim vamos

deixar de ver implantes mal colocados, infecções desnecessárias, fracturas mal consolidadas ou crianças com lesões irreversível provocadas por cirurgias iatrogénicas que comprometem sua função motora para o resto das suas vidas.

 Foi esta constatação a que impulsionou esta fase do projecto Ortopedistas Sem Fronteiras, o primeiro passo foi em Kalukembe, mas certamente não será o último.

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