Avançar para o conteúdo principal

Gota. Um tipo de artrite cada vez mais frequente em Angola

O que entra pela boca define a nossa saúde. Somos o que comemos, embora frente ao prato não pensamos nisso. A Gota ou Artrite Gotosa (AG) , talvez seja dos distúrbios mais vinculados ao que e ao quanto comemos. Permita-me esclarecer algo importante antes de continuar. Esta doença nada tem haver com convulsões. Quem convulsiona provavelmente sofre de Epilepsia, que um problema do foro neurológico. A Gota tem principalmente manifestações osteoarticulares. É de facto a monoartrite mais frequente no adulto.

Dito isto, vou a partilhar consigo algumas curiosidades. Sabia que pelo menos 7 dos 56 assinantes da Declaração de Independência dos Estados Unidos de Norteamerica sofriam de Artrite Gotosa?. Benjamin Franklin andava a mancar por causa da dor no dedão do pé. A inflamação das articulações deste dedo é um dos sintomas mais característicos da doença. Repare que os signatários da Declaração de Independência de USA eram gente de classe alta. Carnes vermelhas, mariscos e álcool, não faltavam na messa deles. Todos são alimentos ricos em purinas, ricos em acido úrico. Não por acaso se conhece a AG como uma doença dos reis.

A Gota é particularmente dolorosa, alias, muito dolorosa. Embora qualquer articulação pode ser atingida por ela, as mais frequente são as dos pés, tornozelos e joelhos.

A inflamação articular resulta do acumulo anómalo de cristais de urato (acido úrico). Este é um dos productos finais do metabolismo das purinas. Quando o acido úrico ultrapassa um certo nível no sangue, extravasa e se acumula nos tecidos moles, especificamente dentro e a volta das articulações em forma de cristais de urato. São estes cristais que despoletam a inflamação.

Crise gotosa, monoartrite, na MTF do primeiro dedo

A quantidade de acido úrico no organismo é resultado do balanço entre 3 eventos. A ingesta pela dieta, a produção pelo próprio organismo e a taxa de excreção. A eliminação do excesso de acido úrico é feita quase totalmente pelos rins. Um excesso na síntese ou uma excreção diminuída aumentam a concentração em sangue. É frequente ter indivíduos com uma alimentação adequada que sofrem de AG. Isto porque tem reduzida a excreção ou porque tem algum distúrbio que provoca produção endógena excessiva. A maioria dos pacientes com gota estão fora destes grupos. Na práctica é raro ver Artrite Gotosa em comunidades com alimentação precária.

O álcool complica a evolução da Gota de duas formas. A primeira é que aumenta os níveis de Adenosina, um aminoácido precursor do Acido Úrico. A segunda é que o álcool causa desidratação e acidose, distúrbios que afectam directamente a função renal. Consequentemente a eliminação do do acido úrico por esta via fica comprometida. Qualquer bebida alcoólica tem este efeito, mas bebidas fermentadas são mais prejudiciais que as destiladas. A cerveja é a pior de todas.

Vários estudos confirmam que na Gota, a cerveja é a mais prejudicial entre as bebidas alcoólicas. O vinho, se consumido em quantidades moderadas, é menos toxico. O problema é que a cerveja é rica em Guanosina. Esta é uma purina e nos já sabemos que as purinas e a Gota não se dão bem. Com a cerveja temos a tempestade perfeita. O álcool compromete a função renal e a Guanosina aumenta o acido úrico disponível . No caso do vinho parece existir um efeito positivo no metabolismo do acido úrico, dos seus componentes não alcoólicos.

Sejamos prácticos. Se o nível de acido úrico em sangue, depende principalmente do equilíbrio entre a ingesta das purinas e a expulsão pela urina, modificar um ou ambos factores em caso de doença é fundamental. Não se trata de eliminar a carne e o álcool radicalmente. Na vida tudo é equilíbrio. Se é feliz sem comer carne, nem beber álcool, ótimo.

Agora, o que não faz sentido, é ter mais de 30 anos, ter acido úrico elevado e passar o fim-de-semana a comer picanha, lagosta com chouriços e uns tantos “finos”. Na segunda ou terça-feira, rezar para não acordar com o dedão do pé inflamado. Acredite não tem salmo que lhe safe.

A crise dolorosa aguda da Gota trata-se com anti-inflamatorios (AINEs), com analgésicos, com boa hidratação e controlo dietético. Historicamente a Colchicina da bons resultados nesta fase. Os medicamentos que aumentam a excreção renal do acido úrico, como o Alopurinol (Zyloric), devem ser evitados na fase aguda pelo potencial dano renal. A vitamina C, como em outros distúrbios da fibra colágena, tem um papel importante.

A Gota é frequente em indivíduos obesos, em fumadores e hipertensos. A vasoconstrição provocada pela Nicotina do tabaco pode despoletar ou agravar a crise. É muito difícil controlar a doença sem eliminar os factores predisponentes. Não basta tomar medicamentos, é imprescindível mudar os hábitos tóxicos. Evitar a face cronica da Artrite Gotosa é fundamental. A doença pode ser fatal para os rins e tem um potencial destrutivo articular elevadíssimo. As crises de Artrite Gotosa são extremamente dolorosas, até olhar para a zona afectada dói. Talvez seja este o jeito que a natureza encontrou para alertar sobre a necessidade de não comer e beber descontroladamente.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A ortopedia em Angola. Realidade e desafios

A Sinistralidade rodoviária foi o tema principal do primeiro congresso da SAOT, a Sociedade Angolana de Ortopedia e Traumatologia, tudo indica que será o tema principal em muitos outros. Infelizmente, continuamos a enfrentar, agora com mais dificuldades, a mesma epidemia de trauma. Protelamos muitos problemas ortopédicos graves da população, simplesmente, porque estamos limitados ao tratamento principalmente, das víctimas dos acidentes. O nosso  passivo de doentes com deformidades, de infecções recorrentes e de tumores sem tratar é cada vez maior. A situação actual em quase todas as instituições de saúde, publicas ou privadas pode ser resumida assim: A epidemia de trauma desborda a capacidade de atendimento dos ortopedistas. Mais do 80% da actividade cirúrgica está dirigida ao tratamento das fracturas e suas sequelas. Isto consume recursos, tempo e vocação profissional. Os acidentados lotam practicamente todas as camas disponíveis. Os serviços ficam sem espaço para internar doentes com...

Por que políticos africanos procuram cuidados médicos além fronteiras?

 Numa tendência cada vez mais prevalente e intrigante, políticos africanos cruzam as fronteiras do seu país, em busca de cuidados médicos. Essa prática, que desperta questionamentos sobre a qualidade e eficácia dos sistemas de saúde em seus próprios países, é um fenômeno digno de escrutínio e reflexão. Embora seja compreensível que indivíduos influentes busquem os melhores tratamentos disponíveis, a questão ganha dimensões peculiares quando se trata de líderes e representantes políticos. Afinal, esses são os mesmos indivíduos que deveriam, em teoria, estar comprometidos com o aprimoramento dos sistemas de saúde internos e com a garantia de atendimento de qualidade para todos os cidadãos. Uma das razões frequentemente citadas para justificar essa busca fora das fronteiras é a falta de infraestrutura adequada nos sistemas de saúde africanos. Em muitos países do continente, a carência de equipamentos médicos de ponta, a escassez de medicamentos essenciais e a insuficiência de recursos...

Conheça a nova abordagem da dor crónica

A dor sempre foi objecto de estudo do ser humano e tem um caráter subjectivo, podendo ser compreendida de forma diferente por cada pessoa. Enquanto a dor aguda é um sintoma de alerta e está relacionada a afecções traumáticas infecciosas ou inflamatórias, sendo bem definida e transitória, a dor crónica é caracterizada como aquela que persiste além do tempo necessário para a cura da lesão, com um processo com limites mal definidos, sendo, deste modo, uma doença em si própria. A Terapia Cognitiva (TC) ou Terapia Cognitiva Comportamental (CBT) foi desenvolvida pelo Dr. Aaron T. Os fisioterapeutas ajudam os pacientes a superar as dificuldades, principalmente a dor, trabalhando com seus pensamentos, comportamentos e reacções emocionais. O fundamental é procurar entender o problema apresentado, a situação actual da vida, o funcionamento global do indivíduo ao longo do seu desenvolvimento, suas experiências traumáticas observando como ele organiza a sua própria história como se relaciona ...