O exercício da medicina perdeu parte da mística, da aura, até do seu sentido humanitário. Nas clínicas agora tem livro de reclamações, igual às lojas de comércio. A relação médico-paciente passou a ser de utente-prestador de serviço.
O utente é protegido pelo Código de Defesa do Consumidor. Pode demandar o prestador sempre que se considerar mal tratado ou insatisfeito com o serviço. E é o que fazem frequentemente.
Há paises que tem advogados especializados em litígios contra médicos, a entrada dos hospitais. O paciente (utente?) só paga seus serviços se ganhar a causa. Seja pela frustração ou pelo ganho secundário, o facto é que levar médicos ao tribunal está na moda. Parece ser um negócio rentável.
A medicina não é ciência exacta, os médicos são falíveis. O erro medico existe e sempre vai existir, simplesmente porque a medicina é feita por humanos. O problema é quando os erros, não interessa a natureza, são vistos como incompetência, imprudência ou ainda pior, como negligência. O médico em julgamento tem sempre que demonstrar que agiu correctamente. Mesmo que não seja condenado,sai do tribunal psicologicamente devastado.
O médico que foi demandado em tribunal, será um profissional diferente. Principalmente se foi por algo injusto. Deixa de ser cuidadoso, agora será temeroso. Teme voltar a passar por isso. Adopta condutas, procedimentos e tratamentos que certifiquem seu desempenho, mesmo que desnecessário. Não arrisca, vai pelo seguro, acontece que no seguro nem sempre está a cura do paciente.
Mas é obrigação do médico, curar o paciente?
Moralmente sim, legalmente não. O médico presta um serviço de meios, não de fim. O seu dever é oferecer o melhor serviço em função da sua competência técnica, conhecimentos e recursos disponíveis. Os resultados são outra história. Podem ser positivos ou negativos. Visto desde outra óptica, o médico garante o melhor tratamento ao seu alcance, não a cura.
Foi nos Estados Unidos, lá pelos anos 90, que ganhou força a Medicina Defensiva. Foi uma resposta ao elevado número de processos judiciais contra médicos. Resumidamente são condutas e estratégias diagnósticas/terapêuticas com objectivo de prevenir demandas judiciais. A Medicina Defensiva até tem um manual. É a arte de como fazer medicina sem ir ao tribunal.
Há bem pouco tempo recebi um jovem acompanhado pelo pai. Tinha sido assistido antes por um outro medico por dor lombar. O pai do jovem, um jurista, queria processar o meu colega por não diagnosticar uma suposta escoliose no seu filho. Segundo o pai, ele devia ter solicitado uma radiografia da coluna ao seu filho.
Dificilmente eu recomendaria uma radiografia a um jovem de 20 anos, com dor lombar depois de jogar futebol no dia anterior. Sem qualquer sinal de alarme, sem antecedente de trauma importante e só com um ligeiro espasmo dos músculos para-vertebrais. Pensaria num entorse lombar (o que de facto existia, alem da “escoliose”) e recomendaria principalmente analgésicos e repouso. Em uma semana devia passar, só que antes disso o paciente foi a outro médico.
Uma escoliose tem que ser muito deformante para ser dolorosa. A curva escoliótica na radiografia do jovem tinha menos de 10º. Nem sequer podia ser considerada uma escoliose. Consegui convencer ao familiar do paciente de que a conduta inicial tinha sido correcta. Fiquei com a experiência. Talvez por isso agora peço mais radiografias da coluna do que antes.
Há quem diga que a Medicina Defensiva é benéfica para o paciente.
Isti porque aumenta a segurança, porque diminui as probabilidades de erro e porque o médico é mais cuidadoso. Talvez, mas estatisticamente não parece ser assim. Os litígios legais continuam a subir tal como os custos na saúde. O preço dos actos médicos dispararam por causa dos seguros de responsabilidade civil. Todos querem estar protegidos caso venha uma demanda civil e o preço disso é repasado na factura do paciente.
Outro efeito negativo é a utilização desnecessária de antibióticos que aumenta a resistência das bactérias. Quantas vezes são recomendados por uma simples gripe. Qualquer médico sabe que a gripe é viral, mas como também pode ser o início de uma pneumonia, então recomenda antibióticos “preventivos”. Assim acontece até com feridas ou escoriações superficiais que com curativos simples seriam perfeitamente resolvidas.
Conheço o caso de um colega que foi ao tribunal, acusado de negligência por um paciente com traumatismo craniano. O paciente tinha 50 anos e escorregou no chão. Durante o exame físico estava bem orientado e sem qualquer sinal que indicasse algum compromisso neurológico. Não perdeu o conhecimento. O colega recomendou uma radiografia convencional e deu alta após 6 horas em observação.
No dia seguinte o paciente regressou com cefaleia intensa. Foi feita uma TAC que detectou um pequeno coágulo no cérebro. Pelo tamanho foi decidido não removê-lo e aguardar. Outro exame feito mais tarde não confirmou sangramento activo. Após uma semana teve alta sem qualquer sequela. O paciente foi ao tribunal porque, segundo ele e o seu advogado, o médico devia ter pedido uma tomografia na urgência. Durante o julgamento o juiz perguntou a um perito se uma TAC inicial, podia ter detectado o problema. Ele respondeu – detectado talvez, evitado nem por isso. O colega foi acusado de negligencia.
Agora no centro onde trabalha esse médico, todos os pacientes com TCE (Trauma Crânio-Cefálico), são submetidos a TAC. Não interessa a magnitude do trauma, nem o resultado do exame físico inicial. Agora a TAC é cara, não é por acaso que devem ser autorizadas previamente pelas seguradoras. Bem, agora tem gente com um simples “galo” na cabeça aguardando que o seguro autorize a TAC.
Outro efeito perverso da Medicina Defensiva é a rejeição, directa ou indirecta, dos casos complicados. Na Pensilvânia, Estados Unidos, foram entrevistados 800 médicos para determinar a prevalência das condutas defensivas no seu dia-a-dia. O estudo mostrou que 92% recomendavam testes complementares ou tratamentos só para proteger-se. Além disso, 42% deles tinha eliminado procedimentos de alto risco ou evitado pacientes com complicações.
Em Angola embora o número de litígios contra médicos ainda ser baixo, já se assiste a uma tendência crescente dos mesmos. Não é intenção deste texto questionar o direito do paciente a exigir um melhor atendimento e a culpabilizar os negligentes. Mas acreditamos que a Medicina Defensiva protege os médicos medíocres e desencoraja aos mais capazes.
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